Fui mãe de gambá. As pessoas estranham isso. Puro preconceito. Abacaxi foi encontrado em uma noite fria por Goddard, nosso vira-lata muitas vezes confundido com pitbull. É, os bichos aqui ganham nomes estranhos.
Minha irmã mandou foto do bicho menor que um dedo mindinho e o manteve aquecido durante o resto da noite. Me apaixonei imediatamente. Ainda nem era tão feio.
Nesta noite, sonhei que corria por uma trilha estreita limitada por capim amarelado seco e alto que chicoteava minhas pernas. Corria em desespero de um javali furioso. Meu olhar ia para frente para não tropeçar e voltava para trás para saber o quão perto estava o animal feroz que às vezes sumia depois de uma curva e outra. De repente a trilha terminava em um ninho onde havia sete filhotes de gambá.
Apesar de ser fim de semana, acordei cedo como de costume. Enrolei na cama por causa do frio e aos poucos o sonho foi retornando em minha mente…”sete gambás”. Com uma preguiça difícil de vencer, só às 10h desci a estradinha por dentro do sítio em direção à casa de minha irmã.
Chegando lá, perguntei onde o filhotinho tinha sido encontrado. Ela apontou para o pé da imensa mangueira próxima à piscina. Lá fui eu. Me abaixei e comecei a escanear o chão entre raízes e grama alta. A concentração me permitiu ouvir pequenos sons que pareciam mini espirros. Agora com o foco mais nos ouvidos do que nos olhos, fui encontrando os pequenos seres que emitiam o tal som que arranha a garganta. 1…2….3…4….5….6… isso mesmo, seis filhotes ao redor da árvore, somando sete com o que tinha passado a noite quentinho dentro de casa. Mais tarde, Abacaxi me ensinou que este é o som quando estão assustados chamando pela mãe.
Seguindo a lógica, sem lógica, do nome do irmão, nos encontrávamos com uma salada de frutas completa que trouxe pra casa. Era fácil reconhecer o Abacaxi. Ele conseguiu um machucado em formato de anel no rabo que permaneceu como cicatriz.
Devido ao frio e ao período que ficaram sem comer, com o passar das horas, os bichinhos adormeciam e não acordavam. Minha culpa de ter ficado mais tempo na cama sem dar importância ao sonho só crescia. Ao final do dia, restaram Abacaxi, Amora e Maçã.
Eram muito pequenos. Os olhos abertos tinham uma camada esbranquiçada sinalizando que ainda não enxergavam. Grande Google nos informou que as fêmeas possuem um círculo desenhado em suas barrigas indicando o local da futura bolsa onde carregarão seus filhotes. Por que será que eles caíram da de sua mãe?
Maçã se foi no dia seguinte e Amora alguns dias depois. Apenas Abacaxi, que não ficou ao relento na primeira noite, sobreviveu.
Abacaxi devia ser alimentado com frequência e ainda por cima com um leite caro sem lactose. Em seguida, precisava ser estimulado, com algodão úmido e morno nas partes intimas, a fazer suas necessidades. Tinha esquecido como era cansativo cuidar de recém-nascido.
Conforme ia ficando mais esperto, escalava até nossa nuca. A proximidade com os cabelos lembrava a bolsa quentinha e segura de sua mãe. Como um bom gambá, já se segurava firme enrolando o rabo nos nossos dedos e passamos a colocá-lo para treinar em árvores. Em geral, queria voltar correndo para nossas mãos, principalmente quando Goddard vinha fungá-lo com um focinho três vezes o seu tamanho. E realmente não gostava quando o colocávamos na grama piniquenta, estava totalmente mal acostumado com a maciez da nossa cama. Tanto que meu marido, agora que Abacaxi estava mais ativo durante as noites e atravessava nossas cabeças em suas expedições, pediu sua transferência para o banheiro.
Solto pela casa seria perigoso, pois não sabíamos a reação dos gatos, Sushi e Sashimi, ao darem de cara com um ser idêntico a um ratinho. Pois é, mais nome de comida para os bichos daqui.
De dia, ainda o deixava no nosso quarto, pois a maior parte do tempo, permanecia dormindo em sua caixinha. Certa vez, cheguei a dar o mole de esquecer a porta aberta e ele sumiu. Me deu um desespero de um dos gatos encontrá-lo primeiro. Antes de sair pela casa sem pista e sem rumo, resolvi levantar os lençóis de minha cama, que já estava arrumadinha, e de lá, rolando junto com o movimento do edredom, surgiu uma bola de pelo preto que dormia sobre meu travesseiro.
Apesar da alimentação ideal ser de quatro em quatro horas, como já estava mais fortinho, parei de colocar o despertador no meio da noite. A refeição passou a ser dada se e quando eu acordava, e nesta noite em particular foi às 3:40, enquanto que, se fosse regrada, teria sido às 2h. Acordei, fiz o leite, abri a porta do banheiro cuidadosamente, olhei a caixa-cama vazia. Levantei rápido para ter logo uma visão geral do banheiro e lá estava ele nadando dentro da privada. O desespero era notável, pois parecia que seus olhos queriam saltar da cara.
Culpa, culpa, culpa! Sempre abaixo a tampa do vaso e não fiz isso antes de deitar. Certamente escalou pela mangueira de metal do chuveirinho e pluft…
Enrolei-o rapidamente na toalha. Estava com a boca aberta como quando ficava nervoso e emitia o som de socorro. Ou, neste caso, seria falta de ar?
Voltei ao quarto ainda muito agitada, despertando o meu marido com “Ele estava dentro da privada!”. O coitado pulou da cama e foi esquentar a bolsa térmica. Abacaxi subiu até meus cabelos e gritava quando eu tentava tirá-lo de lá. Ele agarrava com força, o que deveria significar que seu nado noturno não começou muito antes de encontrá-lo. Arranquei-o dos meus cabelos, que não o aqueceriam, mas o deixei no meu pescoço e usei a bolsa térmica como travesseiro. Adormecemos.
Foi só às 5:20 que comeu, por causa do despertador. Passou o dia dando volta no quarto e retornando ao meu pescoço. Recuperado, mas claramente traumatizado.
Conseguia ficar mais feio a cada dia. Era todo especial, desde o rabinho duro e despelado até as orelhas amassadas, passando pelo focinho desproporcional e pelas patinhas de velho, sem esquecer do topetinho moderninho. A gente procurava um pedacinho menos feio e não encontrava, mas todos concordam que ele era especial. E é mentira que fedem! A única vez que soltou um líquido amarelo fedido foi quando ficou estressado com o banho que resolvi dar depois de o encontrar dormindo entre os papeis higiênicos usados no cesto. Nunca mais dei banho, mas também não voltei a dar bobeira com a tampa do lixo.
As aventuras noturnas não paravam. Me perguntava quanto tempo mais até eu voltar a ter uma boa noite de sono.
Em uma noite de tempestade, tivemos um novo susto. Quando relampeja no sítio, parecemos loucos tirando tudo das tomadas. Já perdemos uma antena por não termos tomado este cuidado.
Abacaxi, como de costume, estava trancado no banheiro da suíte, que tem duas portas: uma para o corredor e outra para o quarto. Para evitar que meus filhos pisassem nele durante a noite entrando sonolentos no banheiro, fazia questão de dificultar o acesso trancando o banheiro para o corredor e mantendo as portas do quarto fechadas.
Acordei às 2h e encontrei todas as portas abertas e, claro, Abacaxi não estava na sua caixinha. Mesmo pensamento de sempre: “ele pode estar em qualquer lugar da casa, ele pode ter sido devorado por um gato… Por onde começar?” Acendi o quarto das crianças perguntando quem deixou o banheiro aberto. Bia levantou de imediato para me ajudar a procurar. Já Lucas nem reagiu. Então insisti:
– Lucas, você abriu o banheiro?
Nesta hora, reparei que o formato da cabeça dele estava estranho. Me aproximei e lá estava o Abacaxi fundido em seu o cabelo.
– Lucas, ele está aqui! Você o colocou aí?
– Não
– Sabia que ele estava aí?
– Não
Meu filho havia entrado no banheiro para tirar o abajur da tomada por causa dos raios. Abajur que se encontrava lá exclusivamente por causa do Abacaxi. Lucas é tão desligado que nem se perguntou por que tinha um abajur no banheiro e por que este estava trancado. Deixara a porta aberta.
Como castigo pela falta de atenção, havia xixi de gambá em seu travesseiro, cabelo e rosto.
Outro dia, quando estávamos na cama, uma barata pousou bem no meu travesseiro. Enquanto eu ainda estava armando o grito, Abacaxi deu um pulo e a devorou. Deixando sobre minha fronha apenas as asinhas. A partir daí, virei caçadora de baratas. Seu prato favorito. Quem diria que um dia eu ficaria feliz cada vez que encontrasse um bicho asqueroso desses. Confesso que até hoje, quando vejo uma, me vem à mente “que belo banquete daria”.
Maior e mais independente, Abacaxi já se alimentava sozinho de insetos e frutas. Não era mais justo prendê-lo. Tinha que aceitar que estava na hora de libertá-lo para os incontáveis perigos de um enorme mundo selvagem. Na verdade, ele não me deu muita escolha, uma vez que conseguiu fugir pela janela na noite em que o colocamos em outro banheiro.
E assim, uma casinha presa no alto foi especialmente construída na área externa de nossa casa. Com direito a corda que possibilitava sua subida e descida.
Como todo adolescente, Abacaxi passou a não dar mais satisfação de seus longos passeios. Eram dias sem o vermos, mas sabíamos que estava por perto, pois durante as noites, o ovo de codorna que deixávamos em seu potinho sumia e a máquina branca de lavar roupa amanhecia com um padrão de mini patinhas de barro.
Suas sumidas começaram a incomodar Lucas:
– Ele não nos ama, só ama a comida.
Inconformado decidiu:
– Vou passar a noite em claro para vê-lo!
– Ok, mas faça isso na sexta. E se vir um gambá dentro da casinha, não sai metendo a mão que pode não ser o Abacaxi. – Aconselhei.
– Pode nem ser um gambá! – Ele completou.
Três da manhã, Lucas apareceu na minha cabeceira:
– Ele está aqui!
Pensei: “não acredito que o menino ficou de vigia na área de serviço!”
– Você ficou acordado em pleno dia da semana?
– Não! Acordei com ele na minha cama!
Pulei da cama ainda com o cérebro desligado e lá estava ele: molhado, imundo e enorme. Como uma semana fez diferença. Estava com mais de 20 centímetros, sem somar o rabo, enrolado sobre a parte mais fofinha do cobertor. Levei-o para área de serviço. Dei um ovo de codorna, que devorou, e um pedaço de banana, que comeu com menos paixão. Coloquei-o na porta da casinha, mas ele rapidamente se afastou. Tinha deixado de dormir ali desde que Goddard o perturbara, provavelmente tentando impedir sua saída, pois ele fazia isso com os gatos, como quem diz “fique aqui que é mais seguro”.
Na volta para o meu quarto, vou olhando janela por janela. Todas fechadas. Como se lesse meu pensamento, meu marido fala quando entro:
– A porta da varanda da suíte estava aberta. Ele entrou por lá.
De seu esconderijo, Abacaxi deve ter ouvido as lamentações e quis provar ao Lucas que ele estava enganado.
Era cada vez mais raro conseguir vê-lo, apenas seus rastros se faziam presentes. Como na vez que, após vermos um filme, encontramos uma poça de xixi no banheiro em que costumava ficar e brincamos “tem toda razão, todo restaurante deve oferecer banheiro aos clientes.”
O ritual se repetia, ao deitar deixava seu ovo de codorna e ao levantar limpava a sujeira do ovo devorado. Começava o dia com a mensagem de que estava tudo bem.
Com o intervalo aumentando entre nossos encontros, às vezes se passava um mês, sempre nos encontrávamos receosos. Me aproximava devagar para ver se ele ainda se lembrava de mim ou se ficaria assustado e talvez me mordesse ou me arranhasse. Já o Abacaxi, no primeiro instante, ficava imóvel e, assim que tinha oportunidade, entrava correndo na casinha. Porém neste encontro, como ele veio cedo, eram 22h e não 3h, fiquei mais tempo com ele. Comecei a conversar e, devagar, ele saiu da casinha. Aproximei meu rosto. Ele veio ao meu encontro, me cheirou e, de repente, zuuup subiu no meu ombro.
Sabia que o certo era deixá-lo o mais livre possível e que provavelmente o melhor para ele era esquecer dos amigos humanos, mas me permiti ser egoísta por um momento. Sentei sobre o móvel da área de serviço. Passei-o do ombro para o colo. Sentado olhou para mim e enfiou seu focinho entre meu braço e a lateral do meu corpo. Abriu as quatro patinhas em espacato duplo, praticamente se derretendo, e relaxou por completo. Chegou a suspirar. Ficamos assim por trinta minutos. Sim, cronometrei.
Minha bunda já reta e o frio de fora sendo ignorado, então ele se espreguiçou. Levantou em câmera lenta. Foi até o pratinho de comida, desta vez comendo com tranquilidade, voltou para perto de mim com claro olhar de despedida e desapareceu no mato.
E assim foi.
Muito bom! Adorei relembrar e adoro o jeito que você escreve!
Amo essa história!